Capital do ouro ilegal resiste a operações contra o garimpo na Amazônia

 

José Maria Silva de Souza começa cedo os preparativos. Conhecido como Zé Maria, ele tem muitas coisas a fazer antes de rumar para seu garimpo de ouro. Uma parada no supermercado para comprar mantimentos, outra no posto de gasolina. Em outro ponto, quatro trabalhadores sobem na caçamba de sua caminhonete.

Um pouco mais adiante, uma mulher que trabalha como cozinheira também se junta ao grupo. Antes das 11h, a picape branca carregada de equipamentos e mantimentos percorre uma estrada enlameada a quase 100 quilômetros por hora. Logo atrás, nosso carro sofre para acompanhá-lo.

Zé Maria está com pressa. Desde que agentes ambientais federais queimaram duas escavadeiras suas há algumas semanas, suas minas pararam de funcionar – e ele está perdendo dinheiro. “Aqui vivemos do garimpo, né?”, diz o homem forte, de 55 anos, cuja barba grisalha contrasta com a pele escura. “E o governo está em cima da gente, não podemos trabalhar.”

Depois de dirigir por mais de 90 km, deixamos os veículos à beira da estrada e andamos cerca de 30 metros até as margens da floresta. No meio das árvores, uma máquina de 3 metros de altura, queimada, parece estranhamente fora de contexto. “Trouxemos ela para cá para tentar escondê-la”, diz Zé Maria.

A escavadeira de Zé Maria custa cerca de R$ 1,5 milhão. Diante do prejuízo, ele levou seus homens para tentar recuperar pelo menos algumas peças. “Talvez consiga tirar cerca de 30 a 40 mil reais”, diz ele, enquanto os homens sobem no veículo em busca das peças que sobraram.

 

Um segundo grupo de empregados está em outra mina de Zé Maria, a alguns quilômetros dali, tentando instalar um tatuzão – uma mangueira conectada a uma bomba que produz um jato d’água de alta pressão para escavar as margens do rio em busca de ouro.

O sistema é menos eficiente que uma escavadeira, mas Zé Maria teve que apelar ao tatuzão para manter as minas funcionando enquanto economiza para comprar novo equipamento: “Não estou pensando em desistir”.

As minas de ouro de Zé Maria ficam próximas à estrada Transgarimpeira, que leva esse nome por causa do garimpo, atividade que não está sujeita às mesmas exigências ambientais rigorosas impostas à mineração comercial em grande escala. “É a estrada do ouro”, diz Guilherme Alcarás de Góes, do ICMBio, órgão do governo federal responsável por proteger as unidades de conservação.

 

Transgarimpeira: rota do ouro ilegal

A estrada fica em Itaituba, município do Pará com uma área do tamanho da Paraíba e conhecida por ser a capital brasileira do ouro ilegal. Ela abriga cerca de 16% de todas as áreas de mineração do país e é responsável pela produção de 75% de todo ouro ilegal do Brasil , de acordo com um relatório feito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Itaituba também concentra a maior parte dos esquemas de lavagem ilegal de ouro descobertos pelas autoridades.

Estendendo-se por 190 km, a Transgarimpeira é o centro nevrálgico da indústria do garimpo de Itaituba. A estrada fica a 300 km do centro do município, atravessando uma área que nos anos 1980 fora destinada à mineração artesanal. Mais de 40 anos depois, contudo, as ferramentas rudimentares que deveriam ser usadas ali foram substituídas por um maquinário caro, como o usado por Zé Maria, aumentando os danos ambientais causados pelo garimpo. De acordo com especialistas, uma escavadeira pode fazer, em um dia, o que três homens usando um tatuzão levariam 40 dias para fazer.

Ao mesmo tempo, várias unidades de conservação foram criadas sobre a reserva de garimpo, aumentando os conflitos entre garimpeiros e fiscais ambientais.

“A maioria dos garimpos aqui são ilegais”, diz Góes, que encontramos num grande acampamento montado por uma força-tarefa federal às margens da Transgarimpeira, com o objetivo de combater crimes ambientais na região. “E não estamos falando de garimpos pequenos, mas de garimpos de 40 hectares, 30 hectares.”

Os agentes haviam chegado 15 dias antes, numa ofensiva sem precedentes contra as minas de ouro clandestinas na Área de Proteção Ambiental do Tapajós (APA Tapajós). Os garimpos são permitidos nesse tipo de unidade de conservação, mas apenas se licenciados.

 

Ações do governo federal contra o garimpo ilegal

As escavadeiras de Zé Maria foram queimadas durante uma dessas inspeções, seguindo o decreto federal que autoriza a destruição do maquinário usado no garimpo ilegal caso os agentes não tenham como transferi-lo para outro lugar. “Essas máquinas estão localizadas em lugares de difícil acesso. Nossa única alternativa é inutilizá-las”, diz Góes.

Esta é a primeira vez que o ICMBio monta um acampamento na Transgarimpeira — por motivos de segurança, as fiscalizações anteriores se resumiam a incursões rápidas de helicóptero. A operação, que envolveu 27 policiais, faze parte da ofensiva do presidente Luiz Inácio Lula da Silva contra a mineração ilegal na Amazônia brasileira.

De acordo com o Ibama, 150 retroescavadeiras e 600 dragas, usadas para revirar o leito do rio em busca de ouro, foram destruídas no primeiro ano do mandato de Lula, em 2023. Como resultado, o desmatamento ligado ao garimpo na Amazônia caiu 30% em relação a 2022.

O governo federal também mudou as regulações sobre o comércio de ouro, dificultando a lavagem de ouro ilegal. A emissão de notas fiscais eletrônicas passou a ser obrigatória para o comércio do metal. As DTVMs (Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários), únicas instituições financeiras autorizadas a comercializar ouro no Brasil, perdera a prerrogativa de “boa fé”, um dispositivo legal que as eximia de verificar a origem do metal.

As novas regulações, combinadas a grandes operações contra DTVMs suspeitas de envolvimento com a lavagem de ouro, afastaram esses compradores oficiais do mercado de ouro local, já que a maior parte do metal comercializado na região vem de minas ilegais. A retirada das DTVMs deixou um vácuo em Itaituba, rapidamente substituído por comerciantes ilegais; de acordo com especialistas, o Brasil deixou de ser um centro de lavagem de ouro e se transformou em um fornecedor de ouro ilegal para outros países.

“Estamos numa transição”, disse o perito da Polícia Federal Gustavo Geiser, em seu escritório em Santarém, ao norte de Itaituba. “Ainda não sei qual será o novo ponto de equilíbrio. Mas precisamos ser muito duros neste período de transição para que isso aconteça. Daí o mercado terá de se regular sozinho.”

A nova abordagem das autoridades desencadeou uma onda de indignação nas áreas de mineração de Itaituba, que teve seu ápice no fim de abril, quando dezenas de pessoas passaram dez dias se manifestando na Transgarimpeira.

“[Fiscais] vieram à minha propriedade, queimaram minha escavadeira e quebraram tudo sem dó”, disse o dono de garimpo Carlos Mendes Moraes durante a manifestação.

“O garimpeiro nem anda armado”, disse Manuel Edilson Santos, outro empresário do garimpo. “É por isso que o governo faz o que quer. Ele invade, nos humilha e diz que somos bandidos.”

 

Da lama aos centros de poder

“É a carreata do morto”, explica calmamente uma menina de dez anos enquanto uma cacofonia de buzinas interrompe a entrevista com seu pai na sala de estar da família. É nosso primeiro dia no vilarejo de Creporizão, onde um garimpeiro acaba de morrer por picada de cobra.

Ele estava saindo das águas barrentas do garimpo depois de um longo dia de trabalho, quando uma cobra mordeu sua perna. Quando chegou ao hospital de Itaituba, a quase 500 km dali, já estava morto. Mais do que um sinal de luto, a longa fila de motos e carros que se estendia pela rua era um protesto contra o acesso precário à saúde em Creporizão, uma comunidade de 6 mil pessoas localizada no fim da Transgarimpeira.

O pai da menina, Edézio Fernandes de Araújo Filho, também foi “ofendido” por uma cobra, como dizem as pessoas dessa parte da Amazônia. O acidente aconteceu há alguns anos, quando ele estava trabalhando numa mina de ouro no Suriname, país que faz fronteira com o estado do Pará. Araújo Filho quase morreu, e a experiência foi transformadora.

“Eu virei evangélico, aceitei Jesus e deixei o garimpo”, conta. Mesmo assim, Araújo Filho nunca se distanciou da atividade. O garimpo está no sangue da família, a começar pelo seu pai, um dos pioneiros na região da Transgarimpeira. “Eu me sinto um garimpeiro. Muitas pessoas até me chamam de pastor dos garimpeiros, porque eu costumo pregar nas áreas de garimpo.”

Creporizão, como outros vilarejos ao longo da estrada, é uma currutela, expressão antiga que ainda se aplica às comunidades nascidas perto das minas de ouro. “Antigamente, os garimpeiros passavam meses trabalhando [nas minas]. Quando recebiam o dinheiro, iam para a currutela”, diz Araújo Filho. “Era um lugar para se divertir, onde tinha cachaça, mulheres, cabarés.”

Ao avistar Creporizão, num domingo ensolarado no fim de abril, a impressão foi muito mais deprimente do que festiva, e não só por causa da morte recente. Em uma das ruas principais da comunidade, dezenas de homens se reuniam na frente de três bares, ouvindo música e bebendo cerveja ao calor do início da tarde. De acordo com moradores, é comum que dias terminem com algum homem esfaqueado no meio da rua.

À medida que o sol se punha, no entanto, as ruas eram tomadas por famílias – mulheres, homens e crianças –, usando suas melhores roupas para ir à igreja ou a um churrasco no restaurante. “Hoje, o Creporizão se tornou uma currutela familiar. Tem escola, centro de saúde. As pessoas de fora acham que isso não existe aqui, mas existe”, diz Araújo Filho.

De fato, Creporizão não deve nada a outras pequenas cidades paraenses em termos de lojas e serviços, com suas butiques, padarias, hotéis e salões de beleza. Mas sem o dinheiro do ouro (sobretudo ilegal), nada disso existiria. “O ouro impulsiona o comércio em geral”, diz Araújo Filho, reclamando que a comunidade está em crise desde a chegada do ICMBio. “Se você andar por Creporizão hoje, verá que muitos comércios estão fechados.”

Uma nova praça, com jardins e quadras esportivas, está sendo construída na parte alta da cidade. Na frente da obra, um outdoor credita a melhoria a Wescley Tomaz, deputado estadual do Pará que conseguiu recursos para financiar a estrutura.

Nascido na vila e filho de garimpeiros, Tomaz é um dos principais defensores dos produtores de ouro. “Em Itaituba, sete entre dez homens têm uma ligação direta com o garimpo”, disse ele em seu escritório no centro da cidade. “Estou falando de mais de 200 mil pessoas que vivem numa região que não tem outra fonte de renda exceto a atividade de mineração.”

Tomaz está concorrendo às eleições municipais junto a outros 58 candidatos de todo o Brasil que se declaram abertamente garimpeiros. Ele quer ser o próximo prefeito de Itaituba, substituindo o controverso dono de garimpo Valmir Climaco, alvo da Polícia Federal em 2019 quando quase 600 quilos de cocaína foram encontrados em uma de suas fazendas.

Elegante e engenhoso, Tomaz é um exemplo bem-acabado da extensão da influência do garimpo: suas raízes, fincadas nas águas barrentas das minas, estendem-se por dezenas de currutelas como Creporizão e outros centros urbanos como Itaituba, e chegam às mais altas esferas de poder do país.

Juntamente com outros políticos, como o senador Zequinha Marinho e o deputado federal Éder Mauro, que apoiam a agenda dos garimpeiros em Brasília, Tomaz expressa os principais argumentos a favor do setor.

Entre eles, a indignação com a criação de unidades de conservação como a APA Tapajós, estabelecida durante o primeiro mandato de Lula na presidência, em 2006. Outra queixa comum é a suposta dificuldade para regularizar as áreas de mineração junto às agências governamentais. “Todo o probelma do garimpo ilegal e do crime ambiental é culpa do governo. Porque o que é irregular pode ser regularizado”, diz Tomaz.

Regularizar o garimpo, ou seja, basicamente mudar sua categorização de ilegal para legal, requer autorização da Agência Nacional de Mineração e uma licença ambiental na qual o garimpeiro se compromete a remediar os danos ambientais causados pela atividade. De acordo com Góes, do ICMBio, os donos de minas ao longo da Transgarimpeira já foram informados inúmeras vezes sobre a necessidade de legalizar suas áreas.

“As pessoas preferem pagar 1 milhão de reais em maquinário e começar a trabalhar, sob o risco de perder o equipamento devido à falta de licença, a investir 50 mil reais para conseguir uma licença em seis meses”, diz ele.

Ainda assim, alguns garimpos não podem ser regularizados, como aqueles localizados dentro de terras indígenas ou em unidades de conservação de proteção integral, onde a mineração é totalmente proibida.

 

Garimpo ilegal: entre dinheiro e mercúrio

Uma mina como a de Zé Maria emprega cerca de sete pessoas: cinco garimpeiros, um operador de escavadeira e um cozinheiro. Cada um ganha uma porcentagem do ouro extraído. “Eles são freelancers, por assim dizer”, diz o policial federal Geiser. “No fim de cada ciclo, pesam e dividem o ouro.” Os garimpeiros, que fazem a parte mais difícil do trabalho, recebem entre 14% e 16% cada.

Edvaldo Pereira dos Santos, 54, trabalha em plantações de eucalipto no estado vizinho do Tocantins, mas tirou alguns meses de folga para fazer algum dinheiro nas minas de ouro de Itaituba. “O serviço não é bom”, diz ele enquanto conserta uma parte do tatuzão, num calor de mais de 40 graus. “Mas é aqui que às vezes se ganha dinheiro rápido.” Ao redor, troncos de árvores partidos despontam na água enlameada do rio, que antes era saudável.

“Não tenho dúvida de que o garimpeiro trabalha duro. A mineração é uma atividade difícil e laboriosa, e você precisa ter muita coragem para trabalhar nela”, diz Geiser.

Num país com desigualdades brutais, a mineração de ouro está por trás de histórias impressionantes de ascensão social. Rosimeire Gomes de Souza foi para o garimpo pela primeira vez aos 14 anos de idade. Com um bebê no colo, abandonou o marido e logo começou a “mexer com o maquinário”, diz. Agora, aos 45 anos, Souza é dona de escavadeiras de milhões de reais e tem suas próprias minas. “Devo tudo o que tenho ao garimpo.”

Maria Aldenora Azevedo Rodrigues tem uma história parecida. Também mãe solo, ela vivia no centro de Itaituba e trabalhava como empregada doméstica, ganhando R$ 80 por mês. “Às vezes eu deixava de comer para alimentar meu filho”, relembra. Aos 21 anos, Rodrigues começou a trabalhar como cozinheira num garimpo, ganhando cerca de R$ 4 mil por mês.

“Depois que cheguei no garimpo, criei meu filho, comprei minhas próprias roupas, uso joias, perfume, sapatos, sabe?”, diz ela. “O garimpo foi meu pai e minha mãe.”

Mas nem todo mundo tem a mesma sorte. Tanto em Creporizão quanto em Itaituba, é comum ver garimpeiros em situação precária vagando nas ruas. “Tem também muitas mulheres, né? É muita tentação”, diz Santos, empregado da fazenda de eucaliptos, referindo-se aos garimpeiros que gastam a maior parte de seu dinheiro em garotas de programa e festas. Além do álcool, o abuso de drogas como crack e cocaína vem crescendo entre os garimpeiros, dizem moradores locais.

“É difícil compreender essa parte da renda que o garimpo gera e da acumulação que ele não gera”, diz Geiser. “Eles ganham, mas gastam. E é a escolha pessoal deles, não nos cabe julgar.”

Embora os ganhos nas minas de ouro sejam individuais, seus impactos são compartilhados por toda a sociedade – especialmente pelas comunidades tradicionais próximas dali.

Na chamada mineração de aluvião, maquinários como escavadeiras e tatuzões são usados para retirar todo o solo superficial das margens dos rios e expor as camadas mais profundas,  onde está o ouro. “Toda a capacidade de recuperação da área se perde”, alerta Góes, do ICMBio. “É diferente do que acontece numa área desmatada a corte raso para plantar ou para criar gado, onde não houve uma grande movimentação de terra.”

O outro método de extração de ouro envolve as dragas, estruturas flutuantes que reviram o leito do rio em busca do metal. “A draga tem um braço que vai direto ao fundo do rio. No final desse braço, há uma espécie de coroa que gira para remover toda aquela areia”, explica Góes. “É impossível recuperar [o rio] do impacto de uma draga.”

Menos visível, contudo, é o efeito do mercúrio, metal tóxico usado para separar o ouro do minério. Ele acaba contaminando a água e os peixes, que são fundamentais para o sustento de muitas comunidades indígenas e ribeirinhas.

A contaminação por mercúrio em adultos pode causar sintomas como tremores, fraqueza e perda de memória. O mercúrio também pode passar de uma mulher grávida para seus filhos na barriga, e o bebê pode nascer com síndromes neurológicas raras como paralisia cerebral. Em casos menos severos, a criança pode ter atrasos no desenvolvimento neurológico, resultando em dificuldades de aprendizado ao longo de toda a vida.

Quase três quartos do mercúrio usado nos garimpos é contrabandeado para dentro do país, de acordo com um relatório do Instituto Escolhas, que defende o desenvolvimento sustentável dos recursos naturais. O Ibama entende que esse número é ainda maior: o órgão informou à reportagem que praticamente todas as minas do Brasil usam mercúrio ilegal.

“É uma atividade que precisa ser muito regulamentada, e a maioria dos garimpeiros acha muito difícil se adequar à legislação”, diz Geiser. “É um conflito difícil, né? Mas o papel do Estado é garantir que a lei seja cumprida.”

A pressa de Zé Maria para fazer suas minas voltarem a funcionar, contudo, mostra que os garimpeiros não desistem facilmente. “Não há pessoa mais teimosa que um garimpeiro. Ninguém vai pará-los”, diz Araújo Filho, pastor e ex-garimpeiro. “Eles vão continuar insistindo naquilo que lhes garante o alimento, porque todo o mundo tem o direito de ter seu meio de vida.”

 

Fonte: economia.ig